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"Acima de tudo, em um retrato no qual todos os seus integrantes possam aparecer, as rugas são características de poucos. A maioria tem o brilho da juventude nos olhos, em seus músculos, em seus brincos e colares. Não estão ali por obrigação. São maçambiqueiros porque assim nasceram e quiseram permanecer."

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Enquanto para alguns a música tem um aspecto ritual e para outros é uma poderosa ferramenta de entretenimento, o Maçambique de Osório tem em sua música um ponto de equilíbio entre essas duas possibilidades: para Nossa Senhora do Rosário e São Benedito - seus santos protetores – cantam em devoção em seus ritos de fé, mas cantam também em ‘performance’ e exibicionismo pelos corredores das igrejas, salões paroquiais, casas por onde pagam promessas ou por ruas tão compridas da cidade de Osório, litoral norte do Rio Grande do Sul.

Cantam, dançam, balançam suas massacaias, tocam tambores, louvam seus santos e dramatizam um verdadeiro império, com Rainha, Rei, pajens, bandeira e capitães da espada. E isso não é coisa de agora, tem para mais de cem

anos. No livro “A Villa da Serra: Conceição do Arroio - Sua descripção physica e histórica. Usos e costumes até 1872″, escrito por Antônio Stenzel Filho e publicado em 1924, o Maçambique de Osório já estava registrado. Com isso, podemos seguramente dizer que este grupo já possui, no mínimo, 144 anos. Muito tempo antes dos movimentos e processos de ‘estatutização’ da cultura e tradição gaúcha.

É uma tradição que se mantém por gerações, é herança de família. Tudo primo, tio, irmão. Hoje seus integrantes se concentram no bairro do Caravaggio, periferia da cidade de Osório. Mas são quase todos crias do Morro Alto, hoje considerado área quilombola. Foram para a cidade atrás de oportunidades, emprego. Trabalham na construção civil, em linhas de produção, sub-empregos. É neste bairro também onde fica a sede da Associação Cultural e Religiosa Maçambique de Osório, atualmente presidida por Faustino Antônio, também o Chefe de Tambor do grupo.

 

A sede do Maçambique de Osório é também a casa de Francisca Dias, nome pelo qual não é conhecida. Conhecida por ‘Preta’, é ela quem guarda e preserva a memória do grupo, em um armário onde coleciona livros, matérias de jornais, artigos acadêmicos, entre outras lembranças. Preta, além de resguardar o passado do grupo, também é uma das responsáveis pela continuidade do grupo. Filha da atual Rainha Ginga do Maçambique de Osório, Dona Severina Maria Francisca Dias, será a herdeira de sua coroa. O atual Rei de Congo, Tio Sebastião Antônio, é seu tio e pai de Faustino.

 

No mesmo terreno, em uma casa quase grudada, mora Dona Severina. É ela que desde 1992 personifica a Rainha Ginga – mítica rainha negra do reino de Angola – e lidera o grupo. Embora composto essencialmente por homens, é na liderança feminina que possuem a maior representatividade. Além dela, a outra mulher do grupo é sua filha, Dona Conceição, alferes da bandeira. Em tempos idos e não muito distante, o grupo ainda contava com a figura da ‘pajen da rainha’, que a protegia do sol, chuva e ventos sob um guarda-chuva. Na primeira vez em que fui para uma Festa do Rosário, no ano de 2001, essa personagem ainda fazia parte do grupo.

 

Fomos para Osório na ocasião da Festa de São Benedito. Este não é o principal encontro do grupo, que se reúne principalmente em outubro, quando da Festa de Nossa Senhora do Rosário. E isso reflete na participação dos integrantes do grupo, sendo que muitos não estavam presentes. Os dançantes em sua maioria são jovens na faixa dos 20 aos 30 anos, e possuem interesses diversos: futebol, funk, igreja evangélica, etc. Ao mesmo tempo, se esforçam ao máximo para estar presente. Um dos dançantes, hoje com 23 anos e que já na pré-adolescência fazia parte do grupo, recém havia perdido sua avó. Pelo luto, primeiramente sua mãe pediu que não fosse dançar. Depois, ao perceber a frustração do filho e entendendo a importância do grupo e da fé para ele, o autorizou, pedindo que então rezasse para a santa.

 

A festa de São Benedito acontece em Aguapés, distrito de Osório, nas margens da BR-101. Enquanto a Festa do Rosário acontece durante quatro dias, de quinta à domingo, a Festa de São Benedito acontece apenas no domingo. Pela manhã, missa e procissão. A missa tem basicamente a mesma liturgia de outra qualquer, porém é também realizada a coroação dos reis, quando os tambores tocam dentro da igreja. É importante destacar que o padre responsável pela missa foi super atencioso, inclusive avisando aos fiéis que não estranhassem a equipe de gravação que ali estava fazendo imagens do grupo. E aproveitou para falar sobre tolerância e respeito entre todas as religiões. Algo necessário no mundo atual.

Durante a procissão, Chefe de Tambor, tambores, dançantes e Chefes de Espada evoluíam pela rua, enquanto seus cantos faziam a trilha sonora para a fé e devoção dos fieis que ao redor do santo caminhavam. Crianças, cachorros, o barulho dos caminhões que ecoavam desde a rodovia, fogos de artifício. O som que vinha do amontoado de pessoas e que dava luz à paisagem sonora do momento penetrava os ouvidos dos reis, que sentados acompanhavam com os seus sentidos e sentimentos. Com a sua saúde fragilizada, Dona Severina não tinha condições de acompanhar a procissão. Sentada, suas lágrimas de emoção fundiam-se em seu manto.

 

O almoço é um grande evento, parecendo ser algo descolado da fé. É quando os participantes da festa comem churrasco, bebem cerveja, reencontram amigos e participam de um leilão. Dentro os itens leiloado, de ovelhas à joias. Neste momento, o Maçambique de Osório parece perder o protagonismo, se tornando apenas mais um grupo de pessoas que ocupam as mesas dispostas pelo salão. Eles parecem não se importar, pois o que realmente interessa é a sua fé e tradição.

 

Por outro lado, é um momento em que os organizadores da festa – que não são os integrantes do Maçambique – arrecadam dinheiro. Os maçambiqueiros almoçam de graça, mas não possuem direitos. Faustino havia nos convidado para almoçar com eles, na mesma mesa, já havia nos dado os tíckets. Um dos organizadores da festa veio até nós e quis retirar os bilhetes de nossas mãos. Poderíamos até devolver, mas deixamos bem claro que somente o faríamos se fosse para Faustino. Quando ele chegou, não deixou que isso acontecesse: em festa onde o Maçambique é protagonista, os seus convidados são bem tratados e merecem respeito.

 

Foi logo depois que realizamos a entrevista com Faustino, dentro da igreja de frente ao altar, da imagem de São Benedito e ao lado da imagem de Nossa Senhora Aparecida. Importante ouví-lo, saber sua história e sua trajetória. Como se tratam de basicamente uma família só, por aí dá para traçar não somente o passado do grupo e entender o seu presente, mas visualizar uma continuidade, um futuro. Hoje formando o grupo, as pessoas mais velhas são a Rainha e o Rei, os tamboreiros, os chefes de espada, a alferes da bandeira. Os dançantes, como escrevi antes, são jovens, com fôlego, adeptos de academias de musculação. E aos poucos, assim como ele, vão mudando suas posições no grupo: saem do final da vara de dançantes, se tornam guias. Vez em quando assumem as espadas. Um dia, quem sabe, podem até mesmo tocar tambor!

 

Assim, o Maçambique de Osório se mantém na vanguarda das tradições. Não que promova grandes mudanças em seus ritos, bem pelo contrário. São fieis ao que foram ouvindo e aprendendo de seus antigos. Não inovam, embora músicas sejam compostas. Às vezes esquecem algo que em outrora era prática, força das ações do tempo. É orgânico, é da vida. Acima de tudo, em um retrato no qual todos os seus integrantes possam aparecer, as rugas são características de poucos. A maioria tem o brilho da juventude nos olhos, em seus músculos, em seus brincos e colares. Não estão ali por obrigação. São maçambiqueiros porque assim nasceram e quiseram permanecer.


Este conteúdo é totalmente dedicado à Senhora Severina Maria Francisca Dias, a Dona ‘Sibirina’, Rainha Ginga do Maçambique de Osório, que veio a falecer em em 07 de Outubro, dia de Nossa Senhora do Rosário, durante os seus festejos na cidade de Osório. Vítima de uma parada cardíaca, estava internada no Hospital São Vicente de Paulo. Parteira, benzedeira, Severina era Rainha Ginga do Maçambique desde o ano de 1992, mas já fazia parte do grupo há muito anos, tendo sido pajem da lendária rainha Maria Teresa. A seu pedido, a festa desse ano foi realizada ‘normalmente’, tenho como rainha a sua filha Francisca Dias, a Preta. Para esta, desejamos tudo o que há de melhor para o seu reinado. Para Dona Severina, nossos desejos para que descanse em paz. Abaixo, uma registro seu realizado na última festa em que participou, a Festa de São Benedito. As lágrimas que dela escorrem nesta foto devem ser entendidas como a sua emoção e sua entrega para com a sua cultura, sua tradição e sua família, e também pela possibilidade de chegar a mais uma festa. Aos 84 anos, ainda se emocionava com a sua fé.

texto: Lucas Luz

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