"Às vezes era sua voz quem falava. Outras, as cordas do violão. Enquanto falava, tocava o instrumento. Enquanto tocava, seus lábios se movimentavam, como que ousassem dizer as palavras que das cordas sairiam, caso tivessem voz. "
Juliano Trindade "Bonitinho" foto: Francisco Cadaval
Juliano Trindade "Bonitinho" foto: Mario Neto
Juliano Trindade "Bonitinho" foto: Francisco Cadaval
Juliano Trindade "Bonitinho" foto: Mario Neto
Juliano Trindade "Bonitinho" Foto: Mario Neto
Juliano Trindade "Bonitinho" foto: Lucas Luz
Juliano Trindade "Bonitinho" foto: Mario Neto
Juliano Trindade "Bonitinho" foto: Francisco Cadaval
Juliano Trindade "Bonitinho" foto: Francisco Cadaval
Juliano Trindade "Bonitinho" foto: Francisco Cadaval
Juliano Trindade "Bonitinho" foto: Mario Neto
Juliano Trindade "Bonitinho" foto: Lucas Luz
Juliano Trindade "Bonitinho" foto: Mario Neto
Se com os Mbya Guarani aprendemos que a música, os instrumentos, e quem os toca, são uma coisa só (ou algo mais ou menos por aí), Bonitinho é prova viva dessa percepção. Com sua guitarra –
e um tanto de vezes com seu violão –
é uma entidade que se comunica por acordes e conta suas histórias percorrendo o infinito das seis cordas que habitam cada um desses seus instrumentos.
Juliano Trindade Bonitinho, nascido em Itaqui há quase 60 anos, tem sangue índio em suas veias. Como ele mesmo disse, é um bugre lá do interior. Diferente dos mbya, é um músico por vocação e profissão, estando inserido em um outro ecossistema, a partir da indústria da música e do entretenimento, onde o palco é o ritual. Começou a tocar ainda jovem, vendo seus primos fazendo serenatas: era o responsável por carregar as bebidas do grupo. Enquanto isso, trabalhava ‘pra fora’, no campo, filho de mãe analfabeta, 18 irmãos.
A primeira vez que vi o trabalho de Bonitinho foi há uns 8 anos, em um domingo, muito cedo, nesses programas de música gaúcha que despertam os galos. Em tal ocasião, pude vê-lo tocando uma música que, pelo suíngue, me lembrava muito algo do Pará, talvez até mesmo o Chimbinha (Banda Calypso). Ainda antes disso, em uma cronologia um pouco mais distante, Ismael já havia me mandado por email algo que seria um ‘possível “primo” gaúcho’ das guitarradas lá do mesmo Pará: Antoninho Duarte. Não à toa, esses dois artistas se amarram artisticamente e fraternalmente.
Quando fazia os primeiros esboços e a curadoria de Gema, encontrei, no Youtube, um vídeo do Bonitinho chamado ‘Bujazz’. Foi ali que tive a certeza, posteriormente avalizada por meus colegas, de que ele precisava fazer parte deste projeto. Por sorte, conseguimos registrar, em Gema, uma interpretação do Bujazz. Ele que já havia misturado o bugio com samba e com tango, também o misturou com jazz. Para quem não sabe, o bugio é um ritmo genuinamente gaúcho, com origens na musicalidade kaingang (falarei mais sobre isso no episódio de Adelar Bertussi).
Aproximadamente dois meses antes de registrá-lo, encontramo-nos no então escritório do seu conjunto Eco do Minuano e Bonitinho, em Canoas. Ali já foi possível perceber sua eloquência e também o domínio do instrumento, enquanto os dois se fundiam em uma única fonte sonora. Foi uma conversa fácil, de encantamentos recíprocos. Em uma possível interpretação de suas palavras, entendemos que ele estava em uma zona de (des)conforto, onde sua música não era explorada e absorvida tal qual deveria ser. De um lado, os bailes onde costuma se apresentar, com regras, os quais possuem foco na música regional de ‘essência’ gaúcha. Do outro, uma legião de interessados pelo fazer musical de Bonitinho, mas que não encontram possibilidade de testemunhar isto ao vivo. No meio, uma barreira. Apesar disso, som alto, suíngue e wah-wah nunca perdiam espaço em suas apresentações.
Batizado com nome Vitor, mas sem certidão de nascimento em cartório, foi a necessidade de um registro oficial, para que pudesse atuar como músico profissional, que fez com que Bonitinho passasse a se chamar Juliano. Fanático por um filme de faroeste, de enorme sucesso em sua época adolescente, chamado ‘O dólar furado’, escolheu o nome do protagonista, Giuliano Gemma, para si. Passou a se chamar Juliano Trindade. É nessa mesma época que surge o Bonitinho: um vizinho de sua tia – com quem morava – havia recém chegado do Rio de Janeiro, onde era inspetor de polícia. Um dia o vizinho lhe disse parecer muito com um bandido carioca, apelidado Bonitinho. Como não gostou da comparação, pegou.
Em Itaqui, na região da fronteira com Argentina, acompanhou balés de tango da Argentina e do Uruguai, serestas, chamamé, tocou na noite. ‘Fez muito barzinho’. Rodou por Santo Ângelo e Santa Maria. Música brasileira, rock. E foi em Santa Maria que começou a tocar música gaúcha. Não que gostasse, mas é que naquele momento, seria a forma mais fácil de conseguir a sua sonhada guitarra Fender.
Recém-chegado em Santa Maria, juntou-se à uma dupla formada por violão e acordeon, 'Os Piás Gaúchos'. Aceitava tocar com eles, mas como não gostava de música gaúcha, disse que não queria cachê, mas si a guitarra de seus sonhos. Tocou um ano com a dupla, e nada de guitarra. Percebeu que estava sendo enrolado (um dos colegas apareceu de carro zero, um Fiat 147) e pediu as contas.
De malas prontas para Santo Ângelo, onde voltaria a tocar com sua antiga banda, estudando na casa de sua ex-mulher, recebeu uma inesperada visita: vindos de Cruz Alta, Airton e Ivonir Machado, os irmãos que criaram um dos mais importantes conjuntos de música regional gaúcha, os ‘Garotos de Ouro’ (a banda que provavelmente é a maior influência gaúcha para o início do movimento Tchê Music). Tinham shows marcados, as datas estavam próximas, o antigo guitarrista recém havia saído do conjunto e ficaram sabendo sobre Bonitinho. Proposta feita, o mesmo combinado: Bonitinho não gostava de música gaúcha, por isso não queria cachê, apenas sua guitarra Fender. Foi já no primeiro baile em que tocou com eles, talvez o primeiro imerso no universo fandangueiro, que começou a se encantar pela música gaúcha, pois havia ficado surpreso com o respeito do público pelo trabalho dos artistas.
Durante dez anos permaneceu no Garotos de Ouro. Dá para se dizer que foi a partir dali, e através dele, que a guitarra começou a ganhar espaço na música regional gaúcha. Assim, chegou em Porto Alegre, instigado pelo amigo Oscar Soares, violonista d’Os Mirins, outra grande referência do violão na música regional gaúcha.
Em 1992 assume o Eco do Minuano, uma ‘bandinha que já existia’, agregando a este o seu próprio nome artístico: ‘Eco do Minuano e Bonitinho’. Com o grupo, gravou dez álbuns. Neste período, também gravou três trabalhos solos, assinando apenas como Bonitinho. Se com o Eco a sua música já é popular e brasileira, em seus álbuns individuais isso fica bastante evidente, pois não há o compromisso da gaita.
Bonitinho gosta de música. Em um de nossos encontros, lhe apresentei afrobeat, músicas de Fela Kuti e Tonho Crocco. Ouviu sua guitarra ali. Falamos para ele de Luis Vagner, outro de nossos protagonistas. Ficou o interesse em um trabalho coletivo. Além da guitarra, toca e grava em seus discos praticamente tudo, incluindo percussões e bateria. Seu ritmo é rico.
Nossa gravação se deu início na cidade de Canoas, na garagem onde fica o Mimosão, seu ônibus. E sua casa. Aproveitando, é por este adjetivo que Bonitinho costuma chamar as pessoas: mimoso! É com o seu ônibus pintado em roxo, que o Eco do Minuano e Bonitinho percorre as estradas do Rio Grande do Sul e de outros estados brasileiros, onde sua música se faz presente. É cama, mesa e banho. Cozinha e convívio. Não é um desses ônibus cheios de luxo, mas tem essência, alma. Histórias.
Uma das premissas iniciais para os registros audiovisuais de Gema foi encontrar os protagonistas em lugares onde se sentissem bem, onde seus corações respirassem com calma. A escolha de Bonitinho foi seu ônibus, extensão de sua casa. Um legítimo roadmovie via Free-Way.
De Canoas partimos para a Vila Elisabeth, bairro do Sarandi, zona norte de Porto Alegre. O lugar do show, a AMVEP - Associação dos Moradores da Vila Elisabeth e Parque -, maior associação de moradores da América Latina. O baile, comemoração do encerramento da gestão administrativa em vigência.
Enquanto sua equipe montava o ‘circo’ (palco, luz, som, estruturas metálicas – tudo equipamento próprio), conversamos no ônibus.
Às vezes era sua voz quem falava. Outras, as cordas do violão. Enquanto falava, tocava o instrumento. Enquanto tocava, seus lábios se movimentavam como que ousassem dizer as palavras que das cordas sairiam, caso tivessem voz. Como dito antes, um único ser.
Nos contou de sua trajetória na música, já escrita lá em cima. De suas influências: Joe Pass, George Benson, Tom Jobim, Antoninho Duarte – "que tocava um violão bem gaúcho, de aço e com dedeiras que era uma beleza!" – Carlos Santana e Pepeu Gomes. O último, seu maior ídolo. Se Pepeu pintava o cabelo, pintava o seu também!
Na passagem de som, nos apresentou um tema instrumental chamado "Solo Mio". Enquanto ouvíamos, arrepiados, nos perguntávamos quem seria o compositor, supondo que fosse Santana ou Joe Satriani. Algo muito visceral! Apenas depois é que contou ser uma composição sua, feita de improviso e em poucos minutos.
Enquanto tocava essa música, algumas pessoas que já ocupavam o salão, vestidas de prenda ou pilchados à caráter tradicionalista gaúcho - dentro das exigências ‘do livrinho’ - o observavam sem muito entender aquela sonoridade e o porquê dela estar sendo executada ali. Bonitinho parece não se incomodar, tem bom gosto e entende muito bem do que faz. Sabe que um show é feito não somente pelo artista, mas também pelo público presente. Oferece ao público o que querem, sem deixar de buscar a sua satisfação, o seu repertório, o seu gosto.
Se a sua sonoridade já se distancia de certa forma de uma linguagem musical estática, seu visual não é muito diferente. Calças jeans rasgadas, tênis tipo coturno (desses para fazer trilha), jaqueta, boina. Na hora do show, chapelão, tirador, bota, luvas e ‘munhequeiras’, no melhor estilo hardrock. É uma síntese de sua música e isso parece não ser nada forçado, é natural.
O show começa com o hino do Rio Grande do Sul e o que se vê a seguir é uma sequência de músicas dançantes, conduzidas pela sua guitarra, tendo a gaita como pano de fundo. O som é alto, o fandango não pára. São 4 horas de baile, com músicas suas, alguns sucessos de outros compositores da música regional gaúcha e até ‘O Milionário’, d’Os Incríveis, clássico da Jovem Guarda, com fortes influências da surf music.
Bonitinho é um cara atípico, essa é sua essência. Faixa preta em taekwondo há quase 30 anos (fão de Bruce Lee!), todos os dias faz mais de 1000 abdominais. Não bebe, não fuma. É de uma humildade incrível. Repete exaustivamente que, onde lhe chamarem para tocar, vai.
Por sorte, tivemos a oportunidade de registrar a última apresentação do Eco do Minuano e Bonitinho em Porto Alegre. Em 6 de setembro, um comunicado oficial no perfil do Facebook, anunciou o fim das atividades do grupo, depois de mais de 20 anos de estrada. Ao que parece, Juliano Trindade Bonitinho quer novos rumos, não apenas no território do fandango gaúcho, mas também na pluralidade e mistérios da sua guitarra.
texto: Lucas Luz
patrocínio
realização
produção
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