
"Dizem não ter um repertório extenso. E que com uma ou duas músicas iam-se embora, fazendo uma baita festa. São felizes por isso, não tem na música um negócio ou um ritual, mas sim um espaço/tempo de convívio, sem julgamentos, competição ou busca por técnica."

Regional do Ibicuí Foto: Lucas Luz

Regional do Ibicuí Foto: Francisco Cadaval

Regional do Ibicuí Foto: Francisco Cadaval

Regional do Ibicuí Foto: Francisco Cadaval

Regional do Ibicuí Foto: Lucas Luz

Regional do Ibicuí Foto: Lucas Luz

Regional do Ibicuí Foto: Lucas Luz

Regional do Ibicuí Foto: Lucas Luz

Regional do Ibicuí Foto: Lucas Luz

Regional do Ibicuí Foto: Lucas Luz

Regional do Ibicuí Foto: Lucas Luz

Regional do Ibicuí Foto: Lucas Luz

Regional do Ibicuí Foto: Lucas Luz

Regional do Ibicuí Foto: Francisco Cadaval
Se existe no imaginário coletivo uma imagem que identifique o gaúcho, esta provavelmente é a do ‘gauchão’, aquele tipo grosseiro, de bigodão. Um autêntico macho. Buscando na literatura, um Capitão Rodrigo de Érico Veríssimo. Ainda nos arquétipos, se pensarmos em negros e em suas tradições ancestrais (e mais especificamente em negros quilombolas), logo nos remetemos aos tambores, ao Atlântico Negro e à todo o continente africano e as tradições que no Brasil se mantiveram e se ressignificaram.
Mas 50km distante do centro de Santana do Livramento, onde começa ou termina o Brasil, visitamos o Quilombo Ibicuí da Armada. E foi por lá que deixamos alguns de nossos (pré)conceitos. Melhor, não deixamos. Eles se evaporaram,
pois não mereciam ficar em um lugar tão especial em meio ao pampa gaúcho. Ou talvez tenham virado lama.
Foi um final de semana frio, de muitos ventos, chuva e, como escrito ainda agora, lama. Intervenções da natureza contribuindo para a bucólica paisagem de coxilhas, ovelhas e horizontes depois de horizontes. E também de muito calor humano e fumaça.
A comunidade quilombola do Ibicuí da Armada é bastante unida. Não à toa nossa viagem foi desmarcada em um primeiro momento, tendo que ser realizada um mês depois. Na primeira tentativa, dois dias antes de nossa saída, fomos avisados por telefone que uma senhora já de idade avançada, antiga moradora, havia falecido. Com isto, era necessário respeitar o luto e o silêncio, e para eles era fundamental nos receber com alegria e motivação, até porque sabiam que nossa busca era pela sua musicalidade, a qual é essencialmente extrovertida.
Conhecemos essa comunidade através de uma pesquisa aleatória, na qual usamos algumas palavras-chave e encontramos no Youtube um vídeo chamado ‘Gaita no quilombo do Ibicuí’. Aquele vídeo havia se mostrado um conteúdo extremamente curioso, diferente. Com a possibilidade de um novo registro, mais profundo que o anterior, não tivemos dúvida em convidar esta comunidade para ser protagonista de um de nossos documentários. Não tínhamos muitas informações anteriores a respeito, apenas o que eles já tinham contado neste primeiro vídeo, que era uma matéria jornalística para televisão.
Assim, em todos as nossas anotações, dentre elas roteiros e cronogramas, os tínhamos como os ‘Gaiteiros do Ibicuí’. Os contatos iniciais, pré-gravação, foram realizados com Maria Leci, presidente da Associação Remanescente de Quilombo Ibicuí da Armada, fundada no ano de 2009. É ela quem organiza e faz as mediações entre a comunidade e o poder público, embora fique bem claro que a maior parte dos moradores locais seja articulada. Se identificam ainda como daquele local, parte daquele grupo, seus vizinhos, sejam eles negros, brancos ou mestiços.
O primeiro encontro físico entre nossa equipe e a comunidade estava programado para a tarde de sábado. E assim foi, mesmo sem a contribuição do tempo. O que em princípio era para ser uma conversa sossegada e com equipamentos desligados para ajustar o roteiro do dia seguinte, se transformou em uma rápida visita. Chovia muito, ventava e fazia muito frio. Para chegar no Quilombo Ibicuí da Armada, saindo do centro de Santo Ângelo, primeiro é necessário rodar 40km pela auto-estrada.
Chegando na estrada (de chão batido) que dá acesso ao quilombo, anda-se mais 12km. Com o tanto de lama proveniente da chuva que caía a alguns dias, demoramos o mesmo tempo em cada uma das estradas, cerca de meia-hora, totalizando uma hora de deslocamento. Correndo o risco da van - um carro pesado com mais de 1 tonelada! - não aguentar o tranco, saímos em seguida. De qualquer forma, deu para se ter ideia do que nos esperava. Não das condições climáticas, mas do calor das pessoas.
Para voltarmos no dia seguinte, foi necessário pensarmos rápido. Como já dito, não teríamos como subir com a Van. Pensou-se até mesmo em um trator, mas no fim das contas conseguimos carona em uma pick-up 4x4 de um dos vizinhos da comunidade. Aqui, uma redundância obrigatória: chuva, muita chuva! Vento, muito vento! Frio, muito frio! Lama, toda a lama do mundo! Quando chegamos, a comunidade já nos esperava. Em cima de uma mesa na sede da associação, a carne para o churrasco. Ovelha, gado, frango. Mulheres e crianças ali por perto, organizando as saladas, o arroz, o espaço. Em um espécie de galpão em construção, ao lado da sede, o fogo começava a ser preparado.
Embora nossa presença no local fosse para registrar os músicos do quilombo, a comunidade tornou o momento um grande evento, com toda a vizinhança convidada. Ao redor do fogo, muitas piadas e histórias. Ao redor do galpão e da sede, nossos olhares tentando encontrar lugares para que as filmagens pudessem ser feitas. Aos poucos, entendemos que esse tipo de imprevisto fazia parte da dinâmica de nossas gravações, e que gravar no pampa em meados de julho nos deixava sujeito a isso. Não por sorte, mas por se tratarem de imagens endêmicas daquele local, conseguimos ótimos registros, seja da geografia, seja dos habitantes do local, bichos ou humanos.
Em um ambiente apertado mas protegido da chuva, nossos olhos ardiam com a fumaça, nos trazendo lágrimas em vários momentos. E também defumação em nossas roupas. O churrasco foi preparado de forma bem singular, grosseiramente sendo possível dizer um híbrido entre o churrasco do gaúcho do Rio Grande do Sul e do gaúcho do pampa uruguaio. Fogo de chão, grelha, a carne ali por cima solta, lenha, sem espetos. Cheiro e gosto excepcional.
Enquanto a carne assava, Nilton Vaqueiro, nosso interlocutor, nos contou um tanto sobre os costumes locais. E aproveitou também para nos mostrar o preparo do café de cambona, legítimo café de tropeiros, tradicional em lugares de tropeada.
Inclusive, a própria história do sobrenome da família de Nilton já é um fato curioso: assim se chamam pois, ao ser abolida a escravidão, precisavam de um sobrenome. Por trabalharem com gado, seu patrão assim os batizou. E assim permanecem. São vaqueiros, cuidam de suas ovelhas, trabalham com artesanato de couro. Mantém tradições. Por isso mantém a gaita.
A gaita foi introduzida no Quilombo Ibicuí da Armada através dos tropeiros. Passavam por lá com 600, 700 res de gado, na noite faziam um baile, dormiam e no outro dia, quando iam embora, deixavam a gaita como recordação. E assim foi ficando. De geração em geração. Contam que naquela época um gaiteiro animava o baile, no chão batido mesmo. Quando precisavam, jogavam água no chão para abaixar a poeira. Iluminando, apenas um candieiro.
Repetiam exaustivamente, talvez com receio em nos desapontar, que não eram músicos profissionais. Contam que tocavam para animar os ‘chás’ que faziam para receber suas visitas. Dizem não ter um repertório extenso. E que com uma ou duas músicas iam-se embora, fazendo uma baita festa. São felizes por isso, não tem na música um negócio ou um ritual, mas sim um espaço/tempo de convívio, sem julgamentos, competição ou busca por técnica.
Assim, nesse clima de brincadeira, festivo, montaram o Regional do Ibicuí da Armada, formado por duas gaitas (em virtude do mal tempo apenas um dos gaiteiros estava presente), marcação, pandeiro e ‘axé’. Gostam de Tio Bilia e Adelar Bertussi. Nilton é bom de verso improvisado, faz trova, e além de seu trabalho na prefeitura municipal de Santana do Livramento tem como profissão uma de suas grandes paixões: a locução de rodeios crioulos e provas de tiro de laço.
Para nossa surpresa, ainda pudemos participar de um desses tantos bailes da comunidade do Quilombo do Ibicuí da Armada. Ao voltarmos do local onde realizamos a entrevista com Nilton, presenciamos, de forma espontânea, um autêntico baile animado pelo Regional Ibicuí da Armada. Atrás de uma grande mesa, os músicos e quem se animava a batucar em algo, no resto de espaço do salão, úmido do tempo, uma grande confraternização, na qual em dupla (não necessariamente em casal, tampouco com separação de gêneros) todos podiam dançar. Por sorte, tivemos a oportunidade de conhecer algo que para nós era até então inédito, a trova de casamento.
Não sabemos se este tipo de verso improvisado é comum Rio Grande do Sul adentro ou se é algo próprio de lá. Faz parte do repentismo gaúcho, no qual também se incluem a declamação, a payada, os cantos de oi-lai-rai e todas as três modalidades de trova (estilo Gildo de Freitas, Martelo e Campeira). É uma brincadeira entre casais, na qual a dupla improvisa a partir das características do outro, normalmente de forma debochada, irônica. Acham graça, dão risada. E talvez seja essa a principal marca da música do Regional do Ibicuí, que lhe torna tão genuína: é livre de compromisso e teorias. E é uma importante ferramenta para o convívio social da comunidade. Assim, se divertem e se relacionam. Se encontram e se despendem. Afirmam laços e permanecem.
texto: Lucas Luz
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