"Em uma época na qual ainda nem se falava sobre inovação, o pai de Adelar construiu, sozinho, uma pequena usina hidrelétrica em um riacho da propriedade.
Se na história da humanidade a descoberta do fogo foi uma curva, a chegada da eletricidade para as bandas da Criúva foi a curva e a própria estrada para os Bertussi."
Adelar Bertussi Foto: Francisco Cadaval
Adelar Bertussi Foto: Lucas Luz
Adelar Bertussi Foto: Mario Neto
Adelar Bertussi Foto: Lucas Luz
Adelar Bertussi Foto: Francisco Cadaval
Adelar Bertussi Foto: Mario Neto
Adelar Bertussi Foto: Lucas Luz
Adelar Bertussi Foto: Lucas Luz
Adelar Bertussi Foto: Mario Neto
Adelar Bertussi Foto: Mario Neto
Adelar Bertussi Foto: Mario Neto
Adelar Bertussi Foto: Mario Neto
Adelar Bertussi Foto: Francisco Cadaval
Se tem uma coisa que Adelar Bertussi sabe fazer e faz muito bem, é contar histórias. De todos os tipos: da Mulada, dos gringos de Caxias do Sul, dos bugres, dos caipiras do rádio, de Gonzagão, Rei do Baião. Fala de trabalho e de inovação, coisa que pelas bandas da Criúva já existia há mais de cem anos. Conta causos de sua família, mitologia pura dos Campos de Cima da Serra. E suas memórias não se manifestam através apenas de palavras. No fole e nas teclas de sua gaita estão ainda frescas, são quase recentes. É como se fosse um menino. Talvez seja por isso que atende o telefone de forma tão espontânea: "Aqui quem fala é o Tarzan dos Pampas, Adelar Bertussi."
A gravação com Adelar aconteceu na casa em que nasceu, na década de 1930. Construída por seu pai, é ponto turístico, quase centro de peregrinação. Poucos anos atrás, foi erguido nas margens de seu terreno um memorial, onde um obelisco
(presente da maçonaria), uma estátua representando uma clássica fotografia de Adelar e Honeyde e mais uma série de quadros com imagens e informações sobre a trajetória da família Bertussi. Tem até guia turístico! Em um espaço anexo da casa principal, Reneu Francisco Gomes, amigo de tempos de Adelar e caseiro do Rincão da Mulada, mantém uma espécie de lojinha, na qual vende embutidos, queijos, cds e dvds gravados por ele mesmo com a obra dos irmãos Bertussi, além de alguns outros souvenirs.
São muitas as referências de geolocalização do Rincão da Mulada: Vila São Jorge da Mulada, Distrito de Criúva, interior de Caxias Sul, Campos de Cima da Serra, próximo a Vacaria e São Francisco de Paula. Rio Grande do Sul. Mas tem também as orientações que Adelar havia passado pelo telefone, ‘acaba a estrada de chão batido, passa a pinguela, vira à direita...”. Lá pelos idos da década de 40, quando do início do Movimento Tradicionalista Gaúcha, para Paixão Côrtes, Barbosa Lessa e seus pares, ‘a turma da capital’ (na verdade todos jovens do interior do estado que estudavam em Porto Alegre), os Bertussi eram os ‘gringos da serra’. Para Bertussi, gringos eram os de Caxias, se considerando muito mais bugre do que qualquer outro estereótipo dos povos de nosso estado.
A família Bertussi sempre foi muito musical, coisa de DNA. Pai, irmãos, agora os sobrinhos, talvez os netos. Adelar permanece. Com a saúde um pouco debilitada e o avanço da idade, já não se faz mais tão presente nos palcos, mas mesmo assim ainda mantém uma vida ativa e itinerante. Faz tempo mora em Curitiba, por causa de seu segundo casamento. Mas com bastante frequência vai até a Mulada, sempre de ônibus, por terra, ‘mais seguro’.
Seu avô, João Bertussi, ferreiro, ajudou na construção e nos rebites da centenária ponte de Feliz, retratada no episódio 5 de Gema, sobre a bandinha Goela Seca. O pai, Fioravante Bertussi, aprendeu clarinete na escola de música, em seguida se torna o maestro da banda da Criúva. Em Vacaria, fez trilha sonora para filmes de cinema mudo. Em uma época na qual ainda nem se falava sobre inovação, construiu sozinho uma pequena usina hidrelétrica em um riacho da propriedade. Se na história da humanidade a descoberta do fogo foi uma curva, a chegada da eletricidade para as bandas da Criúva foi a curva e a própria estrada para os Bertussi.
Com a luz elétrica, o rádio. Com o rádio e suas ondas, outras sonoridades. Com estas sonoridades, uma revolução em seus pontos de vista. Pai e filhos juntos, formando o conjunto ‘Dois Purungos Acoierados’. Em sua formação inicial, Fioravante Bertussi no clarinete, Honeyde na gaita-piano, Valmor (que não queria fazer parte do grupo e apenas dançar) na bateria, Wilson no clarinete e depois no saxofone, e o mais jovem de todos, Adelar, no pandeiro. Tocavam choro e um tal de ‘samba campeiro’, que anos depois passou a ser chamado ‘vaneirão’.
Tempos depois o grupo se desfez, permanecendo na música apenas os irmãos Honeyde e Adelar, assim passando a serem chamados por ‘Irmãos Bertussi’. Tocavam por tudo, duas gaitas amplificadas por um amplificador transistorizado, que segue exposto lá na Mulada. Enquanto dupla, foram para São Paulo e participaram do programa de rádio de Raul Torres, o ‘chefão dos caipiras’. Foram um fenômeno!
No Rio de Janeiro, se tornaram muito amigos de Sivuca e de Luiz Gonzaga. Este, inclusive, é marca a história dos Bertussi em dois momentos. O primeiro, contador por Adelar, está marcado para sempre nas paredas da Mulada: ‘em 23/09/64 cantou neste galpão o Rei do Baião e rei da simpatia do Brasil, Luiz Gonzaga. Aos Bertussi a minha gratidão, Luiz Gonzaga (Véio Macho)’. O segundo, o que aí já pode apenas lorota, diz que Adelar Bertussi, responsável pela inclusão da bateria na música regional gaúcha de baile, teve esta ideia após saber que Gonzagão é quem havia inventado o terno de forró. Em sua cabeça, se Luiz Gonzaga tinha inserido o triângulo, ele poderia também incluir algum instrumento!
Pela Mulada já passaram muitas pessoas, algumas até quarto tinham. Brizola e Teixeirinha, por exemplo. As camas em que dormiram permanecem lá, arrumadas. Não se sabe se apenas como um elemento decorativo, tipo peça de museu, ou se à espera de algum tipo de ‘alma penada’. Reneu, um baita mentiroso - como ele mesmo se auto-define -, conta muitas histórias de fantasmas e assombrações. Talvez querendo nos assustar, afinal iríamos passar a noite naquela casa quase centenária.
Acordar no Rincão da Mulada em dia que Adelar está por lá, é permanecer no etéreo dos sonhos. Como uma liturgia, se sente ao lado da lareira, pega sua gaita e toca e canta. Agradece ao dia que chega e agracia os ouvidos de quem por lá se faz presente. Inclusive, ao que sua idade avança e a saúde pesa para turnês e apresentações, esse momento é o seu melhor show, íntimo, com total entrega.
Adelar ainda faz algumas apresentações. Tem na Festa da Uva, realizada anualmente entre os meses de fevereiro e março, em Caxias, uma obrigação. Participa das Festas do Divino. Quando possível, comparece aos shows d’Os Bertussi, que hoje tem como líder seu filho, Gilney Bertussi. É ele o responsável por manter o legado de sua família de forma viva para o público. Depois que Honeyde faleceu, Adelar sentiu muita responsabilidade em assumir tudo sozinho, então chamou seu filho para que lhe acompanhasse.
De certa forma, dá para se dizer que a vida dos Bertussi é uma saga, com início, meio e um fim aparentemente bem distante. A música sempre esteve ali, desde Fioravante e o cinema mudo, passando para quando Adelar aprendeu a tocar cavaquinho, seu primeiro instrumento, até os dias atuais, em que uma bateria em miniatura, de brinquedo, convive na mesma sala relicário da Mulada. Não é uma casa mal-assombrada, como poderia sugerir Reneu. Pelo contrário, é uma casa com alma, com vida própria. É, por si só, um outro personagem, talvez o grande narrador dessa história toda.
texto: Lucas Luz
patrocínio
realização
produção
financiamento